segunda-feira, 6 de julho de 2015

A agulha e a linha


BASEADO NUMA HISTÓRIA  DE MACHADO DE ASSIS.

A AGULHA E A LINHA

Toda a minha vida, o meu trabalho foi a costura. Fiz de tudo  desde as calças  aos vestidos, das saias às camisas, fiz vestidos de noivas, vestidos para debute, para festas, para jantares de gala e até para mortalha.

Enquanto, calmamente, ia dando ponto atrás de ponto, o meu pensamento voava muitas vezes e vivi sonhos muito bonitos . Vesti muitas vezes aqueles vestidos, fui a festas maravilhosas, onde era a rainha da noite, mas   a história mais bonita que vivi  foi naquele dia de inverno, enquanto cozia  a bainha dum lindo vestido cor de rosa clarinho, que no dia seguinte, iria fazer as delícias duma menina de 18 anos que iria ser apresentada à sociedade.

Cansada e cheia de frio, parei um pouco, espetei a agulha no tubo de linhas e fui fazer um chá.

Voltei da cozinha com a chávena de chá na mão e pareceu-me ouvir vozes. Eu estava sozinha e as vozes vinha da salinha da costura. Parei à porta e abri muito os olhos e boca, espantada com o que se passava… As vozes vinham do cesto da costura… Meu Deus, eu estou a ficar maluca, tenho que tirar umas férias, então não é que agora até oiço vozes?... isto é demais, sonhar é uma coisa mas assim estou a sair da realidade… não quero ouvir, e tapei os ouvidos, mas a curiosidade era mais forte e aproximei-me devagar.

Com uma vozinha esganiçada a agulha dizia: quem julgas tu que és, ó seu novelo de linhas sem graça? Todo enroladinho julgas que vales alguma coisa?

Deixa-me ! dizia o tubo de linhas.

Que te deixe? Que te deixe porquê? Porque te digo que estás com um ar insuportável? Disse e direi sempre que me der na cabeça.

Que cabeça, menina? Tu não és um alfinete és uma agulha e as agulhas não têm cabeça. Que te importa o meu ar? Cada um tem o ar que Deus lhe deu. Olha para a tua vida e deixa-me em paz.

Tu és um orgulhoso, e um vaidoso.

Claro que sou! E tenho razões para isso, sou eu que cozo os vestidos bonitos e os enfeites que a nossa amiga faz. Achas que não tenho razão para me sentir orgulhoso?

És tu que cozes? E eu? Se eu não fôr à frente abrindo caminho o que fazes tu?

 (Eu comecei a não me sentir bem, então as minhas ferramentas de trabalho tinha criado vida?)

E elas continuavam:___ Dizia o tubo de linhas: sou eu que junto os tecidos, tu apenas fazes buracos.

_ Mas sem os meus buracos tu não consegues fazer nada. O que é certo, é que quem vai à frente sou eu… toma e embrulha! Respondia a agulha.

__Ah ah  ah, lembra-te que os batedores vão à frente dos imperadores, mas quem é que tem mais valor, quem é?

__Tu, imperador? É prá rir…

__Não sou imperador mas o teu trabalho é de subalterno, quem coze, junta e liga, sou eu.

____ Eu já não podia ouvir mais, sentei-me peguei na agulha , olhei para ela com receio. Enfiei-lhe uma linha e continuei a cozer. O diálogo parecia ter acabado, e eu cada vez pensava mais em que a minha cabeça me estava a pregar partidas.

Nos meus dedos a agulha e a linha deslizavam suavemente cozendo aquela seda macia e brilhante.

Volto a ouvir a voz esganiçada que era a da agulha.

Então senhor tubo de linhas, o que acha de ser eu que deslizo nos dedos da nossa costureira? Ainda se acha com mais valor?

___A linha não respondeu nada: ia andando, buraco aberto pela agulha era logo preenchido por ela, silenciosa e activa, como quem sabe o que faz e não está para responder a palavras loucas. A agulha vendo que a linha não lhe dava troco calou-se também. E naquele silêncio onde só se ouvia o plic plic da agulha a entrar no tecido eu acabei de cozer a bainha do vestido. Arrumei os alfinetes, voltei a espetar a agulha no tubo de linhas e guardei tudo na caixa da costura.

Passei o vestido a ferro e esperei pelo dia seguinte para ajudar a menina a vesti-lo e proceder a alguma alteração se fosse caso disso.

O dia da festa chegou e eu preparei-me para ajudar a vestir a nossa obra de arte.

Pus a agulha espetada na minha blusa, pronta para o que fosse preciso e enquanto, puxava daqui, ajeitava dali, comecei a ouvir as linhas que tinham ficado no cozido da bainha do vestido:

Então senhora agulha, quem é que vai à festa, quem é? És tu ou eu que vou juntinho ao corpo da menina dançar no baile, ouvir boa musica e frequentar salões onde tu nunca entrarás?

A agulha não deu resposta. Mas o alfinete de cabeça grande disse:

Toma tola, aprende!... Vai abrir-lhe caminho para ela entrar e agora é  ela  que vai gozar a vida. Faz como eu que não abro caminho para ninguém onde me espetam aí fico.

( Podem crer que,  depois disto, eu nunca mais consegui olhar para as minha ferramentas de trabalho da mesma maneira , passei a respeitá-las muito mais , e antes de lhe mexer  fico sempre de ouvido à escuta, não vão elas  estar a reivindicar alguma coisa …)

       Santo Aleixo 18/06/2015       Na hora da sesta.