BASEADO NUMA
HISTÓRIA DE MACHADO DE ASSIS.
A AGULHA E A
LINHA
Toda a minha
vida, o meu trabalho foi a costura. Fiz de tudo
desde as calças aos vestidos, das
saias às camisas, fiz vestidos de noivas, vestidos para debute, para festas,
para jantares de gala e até para mortalha.
Enquanto,
calmamente, ia dando ponto atrás de ponto, o meu pensamento voava muitas vezes
e vivi sonhos muito bonitos . Vesti muitas vezes aqueles vestidos, fui a festas
maravilhosas, onde era a rainha da noite, mas a
história mais bonita que vivi foi
naquele dia de inverno, enquanto cozia a
bainha dum lindo vestido cor de rosa clarinho, que no dia seguinte, iria fazer
as delícias duma menina de 18 anos que iria ser apresentada à sociedade.
Cansada e
cheia de frio, parei um pouco, espetei a agulha no tubo de linhas e fui fazer
um chá.
Voltei da
cozinha com a chávena de chá na mão e pareceu-me ouvir vozes. Eu estava sozinha
e as vozes vinha da salinha da costura. Parei à porta e abri muito os olhos e
boca, espantada com o que se passava… As vozes vinham do cesto da costura… Meu
Deus, eu estou a ficar maluca, tenho que tirar umas férias, então não é que
agora até oiço vozes?... isto é demais, sonhar é uma coisa mas assim estou a
sair da realidade… não quero ouvir, e tapei os ouvidos, mas a curiosidade era
mais forte e aproximei-me devagar.
Com uma
vozinha esganiçada a agulha dizia: quem julgas tu que és, ó seu novelo de
linhas sem graça? Todo enroladinho julgas que vales alguma coisa?
Deixa-me !
dizia o tubo de linhas.
Que te
deixe? Que te deixe porquê? Porque te digo que estás com um ar insuportável?
Disse e direi sempre que me der na cabeça.
Que cabeça,
menina? Tu não és um alfinete és uma agulha e as agulhas não têm cabeça. Que te
importa o meu ar? Cada um tem o ar que Deus lhe deu. Olha para a tua vida e
deixa-me em paz.
Tu és um
orgulhoso, e um vaidoso.
Claro que
sou! E tenho razões para isso, sou eu que cozo os vestidos bonitos e os
enfeites que a nossa amiga faz. Achas que não tenho razão para me sentir
orgulhoso?
És tu que
cozes? E eu? Se eu não fôr à frente abrindo caminho o que fazes tu?
(Eu comecei a não me sentir bem, então as
minhas ferramentas de trabalho tinha criado vida?)
E elas
continuavam:___ Dizia o tubo de linhas: sou eu que junto os tecidos, tu apenas
fazes buracos.
_ Mas sem os
meus buracos tu não consegues fazer nada. O que é certo, é que quem vai à
frente sou eu… toma e embrulha! Respondia a agulha.
__Ah ah ah, lembra-te que os batedores vão à frente
dos imperadores, mas quem é que tem mais valor, quem é?
__Tu,
imperador? É prá rir…
__Não sou
imperador mas o teu trabalho é de subalterno, quem coze, junta e liga, sou eu.
____ Eu já
não podia ouvir mais, sentei-me peguei na agulha , olhei para ela com receio. Enfiei-lhe
uma linha e continuei a cozer. O diálogo parecia ter acabado, e eu cada vez
pensava mais em que a minha cabeça me estava a pregar partidas.
Nos meus
dedos a agulha e a linha deslizavam suavemente cozendo aquela seda macia e
brilhante.
Volto a
ouvir a voz esganiçada que era a da agulha.
Então senhor
tubo de linhas, o que acha de ser eu que deslizo nos dedos da nossa costureira?
Ainda se acha com mais valor?
___A linha
não respondeu nada: ia andando, buraco aberto pela agulha era logo preenchido
por ela, silenciosa e activa, como quem sabe o que faz e não está para
responder a palavras loucas. A agulha vendo que a linha não lhe dava troco
calou-se também. E naquele silêncio onde só se ouvia o plic plic da agulha a
entrar no tecido eu acabei de cozer a bainha do vestido. Arrumei os alfinetes,
voltei a espetar a agulha no tubo de linhas e guardei tudo na caixa da costura.
Passei o
vestido a ferro e esperei pelo dia seguinte para ajudar a menina a vesti-lo e
proceder a alguma alteração se fosse caso disso.
O dia da
festa chegou e eu preparei-me para ajudar a vestir a nossa obra de arte.
Pus a agulha
espetada na minha blusa, pronta para o que fosse preciso e enquanto, puxava
daqui, ajeitava dali, comecei a ouvir as linhas que tinham ficado no cozido da
bainha do vestido:
Então
senhora agulha, quem é que vai à festa, quem é? És tu ou eu que vou juntinho ao
corpo da menina dançar no baile, ouvir boa musica e frequentar salões onde tu nunca
entrarás?
A agulha não
deu resposta. Mas o alfinete de cabeça grande disse:
Toma tola,
aprende!... Vai abrir-lhe caminho para ela entrar e agora é ela que
vai gozar a vida. Faz como eu que não abro caminho para ninguém onde me espetam
aí fico.
( Podem crer
que, depois disto, eu nunca mais
consegui olhar para as minha ferramentas de trabalho da mesma maneira , passei
a respeitá-las muito mais , e antes de lhe mexer fico sempre de ouvido à escuta, não vão
elas estar a reivindicar alguma coisa …)
Santo Aleixo 18/06/2015 Na hora da sesta.