Hoje acordei cedo. Abri a janela a janela do quarto e lá fora estava tudo molhado.
Choveu durante a noite, mas o sol vem começando a romper e o dia está claro.
Não sei porquê estou triste.
Esta pandemia não nos deixa expandir, vivemos retraídos mas o nosso pensamento não tem trancas e voa, voa e leva-nos a lugares que muitas vezes estão tão escondidinhos que nem nos lembrávamos que existiram.
Foi o caso de hoje. Olhei para o pulso ver que horas eram, e de repente vi o meu primeiro relógio que marcava sempre três horas.
Como eu gostava dele! nunca tive um tão bonito como aquele.
Era o meu tesouro.
Foi assim:
Era à noite, na cozinha da casa dos meus pais, o candeeiro a petróleo iluminava fracamente a divisão. A lareira estava acesa e vinha de lá calor e mais claridade.
Na mesa da cozinha ,junto ao candeeiro, um dos meus irmãos fazia os trabalhos da escola. Eu olhava, como que hipnotizada. As letras do livro bailavam na minha frente, sem eu as perceber, e o meu mano passava-as para o caderno branco com uma desenvoltura que me encantava. Molhava o bico da caneta no tinteiro e desenhava as letras enquanto a tinta durava no aparo, depois voltava a molhar e desenhava as letras novamente. No fim chegava a folha perto da chaminé do candeeiro para secar a tinta, e aquilo tinha um cheirinho que me agradava muito.
Eu queria brincar e pedi: mano deixa-me escrever.
Ele deu-me um bocado de papel e um lápis de carvão.
Fiz uns gatafunhos e aproximei da chaminé do candeeiro. O meu mano riu-se. Não vês que esse lápis não precisa de secar, disse-me.
Aquilo perdeu logo a graça.
Faz-me um relógio ,pedi eu estendendo p pulso.
Ele molhou o bico do aparo no tinteiro e com cuidado fez-me uma circunferência no pulso, com números dentro e os ponteiros marcando as três horas . Não se esqueceu de fazer a bracelete que fechava na parte de baixo do pulso.
Oh!!! fiquei encantada... foi a minha primeira e única tatuagem e durou uma série de dias. Eu não deixava ninguém molhar o meu pulso , e o meu relógio tinha magia, só para os outros é que marcava sempre as 3 horas, para mim aqueles ponteiros andava à volta e marcavam as horas todas.
Queria lá eu saber se o relógio da torre da igreja batia as 7 horas , no meu até podia ser meio dia. Vivi uns dias feliz e encantada com esta prenda linda, quando se começou a apagar, peguei num lápis de cor azul, molhei o bico na ponta da língua e fui passando por cima do risco, mas ficou diferente. Perdeu a graça. Lavei o pulso com água e sabão e guardei o relógio na minha imaginação.
Hoje fui lá buscá-lo e vivi um bocadinho daquela alegria.
Voltei a guardá-lo.
Hei-de lá ir outro dia ver as horas.
Cascais Agosto de 2020